Piquete ou  lockout?

Piquete ou lockout?

Até pouco tempo atrás, João Grandino Rodas era tido como um obscuro professor de direito internacional, completamente desconhecido entre os alunos que ainda não tivessem atravessado o quarto ano da graduação e bastante inexpressivo do ponto de vista político na Faculdade de Direito, ainda que com um currículo extenso, sobretudo em atividades diplomáticas e nas burocracias da vida – Tribunal Regional Federal, CADE, Ministério das Relações Exteriores etc.

Nas eleições para diretor da unidade em 2006, surgiu repentinamente, tirado de uma conhecida cartola, aproveitando a crise e o desprestígio do diretor anterior frente às três categorias – outro com inclinações autoritárias mas com menos tato político (qualquer semelhança com a atual reitora não é mera coincidência). “Concorreram” nas prévias ele e um outro professor de penal que, apesar de problemático, contou com o apoio informal da maior parte do campo progressista da Faculdade, pois era o menos pior, mas, como é comum na São Francisco, os resultados estão dados antes das escolhas.

Isso porque a candidatura do Rodas foi articulada pelo grupo de professores titulares que dirige a São Francisco, encabeçados por Celso Lafer, professor de Filosofia do Direito, sucessor e cria de Miguel Reale, tucano gabaritado, ex-ministro, atual presidente da FAPESP e, principalmente, herdeiro de uma linhagem quatrocentona paulistana que ocupa lugar de destaque nas entidades empresariais.

Para se ter uma idéia, quando candidato, o Rodas convidou vários setores, organizações e grupos políticos da Faculdade para apresentar seu projeto e ‘ouvir’ demandas, insinuando astutamente durante sua campanha um apego ao diálogo e à democracia que não demorou muito a ser desmascarado.

Em uma dessas conversas – na época em que Rodas ainda aparentava preferir as palavras às outras armas – ele relatou que não gostaria de concorrer para a diretoria, mas foi convencido pelo Lafer. Disse que este é quem devia concorrer a diretor, eis que o “Lafer entra pelas portas da frente da FIESP” (sic), o que seria fundamental para retomar a boa imagem e o tradicional prestígio da São Francisco e de seus bacharéis, abalados no competitivo mercado da advocacia diante de profissionais com cabeça pouco mais arejada oriundos de outras faculdades. E o Rodas, por sua vez – segundo ele próprio – ficaria apenas como vice-diretor, pois na condição de um experiente diplomata, teria condições de cuidar da “política menor”, referindo-se às questões internas, especialmente aos conflitos entre funcionários, estudantes e professores.

Ainda que soubéssemos que boa coisa não viria, também não imaginávamos exatamente até onde esse senhor iria para impor a lei e a ordem na comunidade universitária. Tanto que, nesse momento, buscando mais pistas, tentamos concretizar um pouco mais o assunto e questionamos qual seria a postura dele em uma greve tal como a então em curso. Disse o esperado: não teria maiores confrontos, pois buscaria compreender a demanda e priorizaria o diálogo, ao contrário do então diretor, que gritava contra os funcionários e até chegou a destituir diretores do Sintusp dos cargos de chefia após uma greve. Em suma, Rodas construía uma imagem de estar sempre sorrindo e de estar não só aberto, mas de ser um entusiasta do diálogo.

Cansados da mesmice dessa conversa – bem ensaiada e repetida para todos os grupos -, saímos com uma estranha sensação. Aquele misto de segurança e incerteza: estávamos seguros de que sua eleição representava um perigo, mas não sabíamos exatamente por que. Demoramos menos de um ano para descobrir.

Chegada a hora, após mais uma sessão do conclave franciscano, como esperado, venceu esmagadoramente as eleições na Congregação e, o mais irônico, é que antes de cumprimentarem ao Rodas pela vitória, todos parabenizavam o Celso Lafer antes, algo relatado por um docente titular que considerou no mínimo insólita a situação.

A gestão dele foi como as demais, mas como tinha e tem ótimos contatos dentro e fora do governo, ganhou um prédio inteiro do Cláudio Lembo (aos que não sabem, a São Francisco tem um prédio que leva o nome desse político ‘anti-burguês’), passou o chapéu entre antigos alunos para reformar as salas e ocupar esse novo prédio, impôs uma reforma do ensino que pouco alterou o estilo coimbrão, dogmático e formalista da São Francisco, oportunidade na qual brigamos intensamente, inclusive com a ocupação da sala da Congregação na hora da votação, mas não tivemos êxito em radicalizar a reforma, pois poucos professores também compraram essa briga. Além disso, tentou colocar catracas e obstruir o acesso de ‘estranhos’ aos prédios da faculdade, projeto felizmente derrotado.

Foi durante a ocupação da reitoria em 2007 que colocou as mangas da farda de fora e manifestou sua postura militarista e linha dura, angariando apoio de vários setores mais conservadores da universidade que se opuseram à ‘passividade’ da REItora, incluindo o governador José Serra.

No entanto, o episódio mais simbólico foi quando, em agosto 2007, um dos momentos altos da Jornada Nacional em Defesa da Educação Pública, organizada por uma ampla frente de esquerda que há muito não se via em conjunto, ocorreria na São Francisco. Era uma ocupação de um dia, com várias atividades culturais e acadêmicas programadas. Consumada a ocupação, após as indignações de praxe dos alunos de direita, a faculdade foi tomada pelas cores das bandeiras e pela energia militante de inúmeros movimentos e organizações.

A pedido do Rodas, o então vice-diretor, acompanhado de um policial, entrou nas dependências da faculdade e conversou com o movimento, incluindo diretores da gestão Fórum da Esquerda do XI de Agosto, que apoiavam a ocupação. Após constatar que nada fora danificado, que somente estava ocupado o pátio central e que sairíamos logo na manhã seguinte, garantiu que, caso continuássemos desse modo, não haveria maiores problemas, ou seja, deu-nos sua palavra de que não haveria violência policial.

Quando eram quase duas horas da madrugada, chegaram mais de 120 homens da polícia militar, inclusive da tropa de choque, que desocuparam à força a faculdade, fichando e levando todos à delegacia, com um tratamento ofensivo sobretudo aos militantes dos movimentos populares.

Organizamos um ato no Largo de São Francisco na tarde do dia seguinte, mas a faculdade foi fechada por determinação do Rodas que, posteriormente, em uma audiência pública convocada pelo XI de Agosto, disse que a Faculdade “era sua casa”, evidenciando que na sua visão aristocrata, o espaço público não passa de um quintal.

Após esse episódio, setores da direita iniciaram uma campanha para destituir uma gestão de esquerda, eleita democraticamente para o XI, e contaram com franco e aberto apoio do Rodas, que cedeu até mesmo o Salão Nobre – tido como algo intocável na São Francisco – para uma assembléia fraudada arquitetada pelos grupos de oposição da direita. Aí notamos que o Rodas também fazia movimento estudantil.

Isso deve ser bem lembrado, porque após as barbaridades que transformaram a Cidade Universitária em um campo de guerra, tem-se ouvido uma insistente proclamação do ineditismo da invasão da USP pela PM no ‘período democrático’ brasileiro. Ainda que do ponto de vista tático isso ajude a frisar a gravidade do que ocorreu, não podemos esquecer que a truculência como técnica de gestão de conflitos políticos na universidade foi usada já em 2007 pelo Rodas. A São Francisco foi o laboratório dessa forma – nada nova – de tratar lutas sociais e sindicais como questão de ordem pública e policial dentro da Universidade, pois a rigor as periferias nunca conseguiram esquivar-se dessa violência constante e cotidiana.

Além disso, em 2008, na época da Semana de Mobilização da USP, Rodas foi também o relator, no Conselho Universitário, da Resolução que, segundo uma amiga, fez um diagnóstico da situação da USP nos seguintes termos: “os estudantes e funcionários permitem-se o absurdo de interromper as nobres atividades desta Universidade porque os tratamos com benevolência. Acredito que seja o momento de começarmos a tomar medidas mais firmes, recorrendo inclusive à força policial quando preciso, e levarmos com rigor os procedimentos administrativos e suas punições quando cabíveis. Ou seja, é preciso endurecer o tratamento com os “arruaceiros”, desmobilizados – porque não conseguiram organizar o Congresso da USP, quando a Reitora deu todo o suporte necessário”.

Essa série de acontecimentos não pode ser vista apenas como um acúmulo de barbaridades isoladas. É ligar os pontos e sair dos particularismos, sob pena de não compreendermos o que está acontecendo e, pior, não sabermos de fato contra quem e, principalmente, contra o que lutamos.

E a recente presença – e violência – da PM no campus Butantã, são a consagração de um projeto bastante autoritário e elitista de universidade, que mantém a violência próxima e a democracia à distância.

Por isso, ou aproveitamos o momento, despersonalizando as figuras da Suely e do Rodas – que apenas corporificam esse projeto – e politizamos a discussão sobre o autoritarismo, levando a bandeira das diretas e da democratização radical da estrutura de poder da USP em todas suas unidades e instâncias, ou estamos fadados a ver um novo reitor muito pior que a inábil Suely.

O Rodas é um exemplar mais perigoso desse setor da burocracia acadêmica, pois alia o conservadorismo político ao provincianismo acadêmico da São Francisco. Esses professores têm em mente um expansionismo da São Francisco, como se esta tivesse garantido um espaço vital dentro da USP. Basta lembrar que a última vez que um professor desta faculdade ocupou a reitoria foi bionicamente, quando Miguel Reale foi nomeado pelos militares no mais obscuro período da ditadura (1969 – 1973).

Não deixemos essa farsa se repetir, agora, como tragédia.

Por fim, coroando a história do senhor Rodas, veja essa nota tirada do site do Linha Direta, demonstrando a postura dele na comissão que considerou que na morte de Zuzu Angel não houve responsabilidade do Estado.

Por Universidade para quem?

http://linhadiretajustica.globo.com/Linhadireta/0,26665,VYJ0-5259-215748,00.html

Caso: ZUZU ANGEL
27/11/2003
O jurista Miguel Reale Júnior foi presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos no caso Zuzu Angel. A Comissão era composta por sete membros. Antes do depoimento de Marcos Pires, Reale Jr., votou contra a versão de atentado para o acidente que vitimou Zuzu Angel. Após o depoimento de Pires e baseado também em parecer técnico de peritos da polícia civil de São Paulo, Reale Jr. e o relator da Comissão no caso, Luiz Francisco Carvalho Filho, mudaram de opinião e votaram pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado na morte de Zuzu Angel. O resultado da primeira votação tinha sido cinco votos a favor e dois contra. A segunda ficou em três contra e quatro a favor. Permaneceram contrários ao reconhecimento o professor de direito da USP João Grandino Rodas, o procurador da República Paulo Gonet, e o general Oswaldo Gomes. Desde o início votaram a favor o atual secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e Suzana Lisboa, representante de famílias de desaparecidos políticos.