O Bonde da História, coletivo formado por estudantes da Faculdade de História da USP, recentemente leu manifesto durante reunião entre estudantes, funcionários e professores da História.
Publicamos o referido manifesto, conforme segue abaixo.

Organizando o pessimismo

A universidade resistiu ao primeiro autoritarismo, sobreviveu ao segundo; ainda não há sinais de que esteja decididamente enfrentando o terceiro, até pelo contrário, parece ter assumido a modernização tecnocrática como perfil definitivo. Nesse caso, a resistência se transformará em incorporação. É a hipótese que está em questão. Se confirmada, essa “velha senhora” não morrerá com dignidade”. (Franklin Leopoldo e Silva, A Experiência universitária entre dois liberalismos)

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Desde o dia 06 de junho de 2009, digamos assim, ficou escancarado o abismo existente entre os gestores da Universidade de São Paulo e a chamada comunidade acadêmica. Após o desenvolvimento e o encerramento da greve, as categorias e entidades representativas passaram a mirar a crítica nas eleições para reitor, exigindo uma ampliação da democracia e uma alteração na estrutura de poder.  Longe de querermos questionar a validade e a legitimidade dessa pauta, nós, o comando de mobilização da história, perguntamos, a fim de ampliar a discussão: Não seria necessário, para podermos falar em “comunidade uspiana democrática”, questionarmos antes o modo de funcionamento da USP bem como as formas pelas quais nos inserimos nessa engrenagem?

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Está claro, ou pelo menos deveria estar, que a USP não cumpre mais aquele seu papel pioneiro dos anos 30; da mesma forma, também não se trata mais do local de efervescência de um pensamento radical que um dia lançou pontes para o mundo da ação política. Hoje, apesar de alguns soluços de resistência, nos adequamos a uma universidade cujo discurso não é mais o do “pensamento crítico”, mas o da “eficiência” e o da “funcionalidade”. Operamos, finalmente, dentro de uma “universidade de serviços e de resultados”.

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Esse novo discurso deve ser entendido como uma contrapartida intelectual das atuais exigências do capitalismo mundializado. E isso atinge a todos nós na medida em que possui profundas repercussões na forma como nos inserimos nessa instituição. Como bem lembrou Franklin Leopoldo e Silva, esse discurso, ou essas regras gerais do sistema tendem a ser introjetadas como valores acadêmicos e até mesmo morais. Dessa forma, o discurso transforma-se em ideologia orientadora da organização da universidade competente, refere-se às expectativas dos órgãos financiadores que mantêm como critérios avaliadores, a produtividade competitiva. “A desqualificação das posturas críticas e a aceitação dos critérios tecnocráticos de gerenciamento e avaliação contribuem indiretamente para o enfraquecimento do caráter público da instituição, pois não há percepção clara de que não será possível por muito tempo preservá-lo e simultaneamente conviver com o avanço da mentalidade mercantil” (Franklin Leopoldo e Silva).

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Visto isso, podemos falar ainda em “comunidade uspiana”? O comando de mobilização está convicto de que o atual modo de funcionamento da USP destrói o espaço público que caracterizaria uma comunidade. Hoje, essa instituição vive uma verdadeira crise de identidade. Assistimos angustiados no nosso dia-a-dia à atomização de indivíduos, de grupos temáticos, de laboratórios e de cátedras que concorrem pela obtenção de recursos, de espaços físicos, de influências nos concursos para professores ou, simplesmente, por notas nas revistas de divulgação. É a USP em sua fase de acumulação primitiva marcada por espoliações, despossessão e tráfico de influências.

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Como se configura essa acumulação primitiva? Despolitização, esvaziamento institucional, prevalência de critérios economicistas e tecnoburocráticos na gestão da universidade, descaracterização do trabalho acadêmico, desfiguração da comunidade universitária sob o controle das instâncias gerenciais e dos órgãos financiadores de pesquisa, lucratividade de fundações privadas, crise de representatividade das categorias, ausência de reflexão e autocrítica no movimento estudantil, sindicalismo de funcionários e docentes esvaziados, etc.

É diante desse quadro que pretendemos ampliar a democracia na USP.

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Mas nossas reivindicações imediatas, tais como “diretas já” ou “mudança na estrutura de poder”, dão conta dessa situação? Ao olhar para outras universidades públicas (estaduais e federais), parece que nossas demandas podem ser atendidas sem que nada seja realmente alterado. Basta analisar os discursos dos vários candidatos a reitor para perceber que essas pautas já foram assimiladas e devidamente rebaixadas. Fala-se em “desburocratizar a USP”, em “ampliar os canais de comunicação”, em ter “transparência nos gastos”, etc.

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Dados os limites de nossas pautas e tendo em vista a mediocridade das propostas dos postulantes ao cargo de reitor (os quais, com exceção dos “Chicos” são todos eles ligados à atual gestão e/ou ao PSDB e/ou diretamente ao governador Serra), o que o Departamento de História pode fazer? Seria possível um posicionamento comum do Departamento? Se a resposta for “sim”, qual seria esse posicionamento? Escolheríamos o “menos pior”? Boicotaríamos o processo? E/ou debateríamos de forma ampla e madura a crise da universidade (onde a marginalização das humanidades é um sintoma fundamental) negando não apenas o atual processo eleitoral, mas também o modo de funcionamento diário da universidade pública?

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Sabemos que para muitos colegas (estudantes, professores e funcionários) nossa proposta de politizar e ampliar a discussão sobre o modo de funcionamento da universidade (e extrapolar a questão das eleições) soará como procedimento aberrante, como utopismo que não faz referência à realidade. Em nome duma certa “responsabilidade” e de um didatismo marcado por trivialidades esses buscarão fazer o que até agora tem sido feito: Realpolitik.

Enquanto isso a USP se afunda…

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Como já disse há alguns anos um filósofo zero à esquerda no seu Dicionário de Bolso: “Os produtores de idéias há anos estão em greve, sem que no entanto ninguém perceba sua paralisação. A mera repetição intelectual da lógica, como agora é o caso, não constitui uma idéia e nem sequer um pensamento, mas apenas um reflexo. A muito, a maioria dos intelectuais não produz reflexões, mas reflexos desprovidos de idéia”.

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Como estamos falando para historiadores ligados a um lugar chamado “Faculdade de Filosofia”, o que estamos propondo é o fim dessa paralisia